20100718

Fundamentos Bartenieff



A importância da obra de Bartenieff pode ser vista já pelo título dos exercícios que criou – “Fundamentos” -, e a estrutura que os suporta – “Princípios de Movimento”. A partir daquele trabalho com pacientes de poliomielite, Bartenieff desenvolveu uma série de exercícios - que podemos classificar em Fundamentos Bartenieff, preparatórios e variações -,(¹) que constituem a base do movimento humano saudável. Este é compreendido não como um modelo anatômico e fixo de perfeição como citado anteriormente, mas traçado individualmente a partir de Princípios de Movimento em movimento, em relações dinâmicas no corpo de cada pessoa como um todo e deste com o espaço. Partimos do princípio que tudo está em movimento, portanto não nosbaseamos em modelos fixos a serem seguidos ou atingidos como um ideal. Em outras palavras: “mudança é fundamental”, “relação/conexão é fundamental”, “padronizar conexões corporais é fundamental” (Hackney 1998, 12-3).

Movimento humano saudável aqui significa realizado a partir da respiração completa, desde o abdomen e do Suporte Muscular Interno (ativando a musculatura profunda como o IlioPsoas e o Grande Dorsal, e o assoalho pélvico, liberando a musculatura superficial para expressividade) em Correntes de Movimento que conectam as partes do corpo em suas diferentes Organizações Corporais (ou Padrões Neurológicos Básicos) a partir do centro em um todo funcional e expressivo, Tema Função/Expressão). Aqui chegamos àquele impulso do movimento a partir do relaxamento e da respiração, não apenas a partir da ativação do Centro de Peso, como na dança moderna. A estrutura interna é dada pela musculatura profunda e também por Conexões Ósseas, linhas imaginárias entre Marcos Ósseos que ligam pontos estratégicos do corpo, como Cabeça-Cauda (cóccix) e irradiam para o Espaço com Intençao Espacial.

O categoria Forma é também fundamental, uma vez que diz respeito ao volume do corpo, e portanto ao Espaço Interno. Por exemplo, a percepção do volume do corpo como preenchido por líquidos (sangue, linfa, líquido céfalo-raquidiano, conjuntivo, etc.) e vísceras, além dos diversos sistemas (digestivo, endócrino, respiratório, etc.), concede fluidez àquela relação Corpo-Espaço a partir das Conexões Ósseas. Este trabalho com líquidos e fluidos corporais é uma das vertentes desenvolvidas por Bonnie Bainbridge Cohen (1993).

O interessante é observar que o trabalho de Bartenieff, criado a partir de corpos de cadeirantes, é hoje usado no treinamento de dançarinos e atores contemporâneos, em uma abordagem somática. Na dança-teatro, não há a separação entre um modelo de corpo e os excluídos deste ideal. Pelo contrário, valoriza-se o diferente, e busca-se romper com modelos de corpos (sempre sendo refeitos a cada geração e momento histórico) buscando o desafio e o diferente em cada um de nós. Partimos do princípio que todos os corpos têm restrições de movimento, preferências aprendidas ao longo do processo de socialização e que associamos a nossa maneira de ser e de se comunicar no/com o mundo, mas que por isso mesmo também limitam nossa possibilidade de expressão. O objetivo de Laban em seu Domínio do Movimento (1ª edição inglesa 1950, 2ª ed. brasileira 1978) é justamente expandir nossas possibilidades expressivas, para que possamos nos relacionar da maneira mais integrada possível. O que queremos dizer com “integrada”?

Como no tango, nenhuma parte do nosso corpo funciona sozinha ou separadamente. Trabalhamos sempre a partir de relações, ângulos, Correntes de Movimento, Conexões Ósseas, o Espaço Interno irradiando para e vindo do espaço dinâmico ao redor, em Intenção Espacial, etc. Nada existe completamente estático e isolado. Como nos esclarece Peggy Hackney (1998, 16), discípula de Bartenieff, podemos transformar nosso contexto através de ações supostamente simples, mas Fundamentais:

1. Enfocando o trabalho de conexão entre partes do corpo ao invés de enfatizando segurar uma parte e mover as outras contra ela (como é frequentemente feito em exercícios de fisioterapia tradicionais).

2. Reconhecendo as partes do corpo (self) como separadas mas vivas e interconectadas. Se uma parte muda, as outras têm que escutar e encontrar sua relação; ou todas as outras partes precisam escolher a participação desejada.

3. Ensinando movimento como uma experiência relacional – relacionando dentro do próprio indivíduo e com os outros e com o espaço; não simplesmente trabalhando para uma maior amplitude de movimento das juntas ou exatidão em pegar sequências de movimento como solista isolado ou um super star.

Assim, todos os corpos podem se beneficiar da chamada Educação Somática, tanto em termos terapêuticos quanto criativos – processos muito entrelaçados em LMA. Segundo Hackney (1998, 17), fazemos conexões em nossos corpos através de padrões ou planos desenvolvidos por nosso sistema neuromuscular. Estes Padrões Neurológicos Básicos (Cohen 1993), desenvolvidos ao longo do primeiro ano de vida, seguem uma ordem não linear, mas de sobreposição e espiral, às vezes retornando ao estágio prévio para avançar. Hackney denomina-os Padrões Fundamentais de Organização Corporal Total, a saber: Respiração Celular, Irradiação Central ou Centro-Periferia (como uma estrela-do-mar ou um polvo), Espinhal ou Cabeça-Cauda (como uma serpente), Homólogo ou Parte de Cima e Parte de Baixo (como um coelho), Homolateral ou Metade do Corpo (como uma lagartixa), Contralateral ou Lados Cruzados (como um cavalo).(²)

Reviver esses estágios na vida adulta fortifica conexões frágeis na infância, ativando e disponibilizando cada função cognitiva correspondente e favorecendo a integração, isto é, “o uso oportuno de acordo com o contexto” (Hackney, 42). Este trabalho denomina-se de “repadronização” (repatterning). Através da reorganização segundo Princípios de Movimento e Padrões de Desenvolvimento (ontogenético e filogenético),³ transformamos e expandimos padrões cristalizados de movimento. Verificamos, então, a existência de dois tipos de padrões: aqueles de defesa, e aqueles de aprendizagem. Nosso interesse é o de facilitar e estimular o segundo tipo através da mobilização e expansão do primeiro.

Aqui reside outro ponto importante: o de valorizar nossas “fraquezas” e preferências, ou seja, nossas “limitações” como ponto de partida para a transformação. Ao invés de buscar um modelo ideal através da recusa do que somos, forçando nossos corpos a mais uma vez adaptarem-se a uma forma imposta e estranha, entendemos que todo ser humano possui condições de função e expressão em movimento, e portanto cabe a nós expandir nossas possibilidades, desafiá-las, encontrando o estranho em nós mesmos. “Estranho” neste sentido significa desconhecido e diferente do padrão que queremos modificar, ao invés de seguir. Começamos sempre com o que somos hoje, e ao explorarmos nossas possibilidades, re-descobrimos outros padrões, desta vez de nossa memória corporal, re-definindo nossa condição de humanos, entre céu e terra, entre animal e espiritual.

Notas:
¹ Vide a descrição detalhada dos Princípios Corporais e dos Fundamentos Bartenieff , preparatórios e variações, em Ciane Fernandes, O Corpo em Movimento: O Sistema Laban/Bartenieff na Formação e Pesquisa em Artes Cênicas (São Paulo: Annablume, 2002): 39-95.
² Vide a descrição detalhada dos Padrões Neurológicos Básicos, em Ciane Fernandes, O Corpo em Movimento: O Sistema Laban/Bartenieff na Formação e Pesquisa em Artes Cênicas (São Paulo: Annablume, 2002): 43-50. 

³ Dos seres humanos e dos animais, revividas pelo embrião humano e pela criança nos primeiros anos de vida.
Fonte:

Promoção: Departamento de Difusão Cultural - PROREXT-UFRGS
Pós Graduação em Filosofia - IFCH – UFRGS
http://www.malestarnacultura.ufrgs.br/

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