20090927

Outra moça de sari vermelho



(...)
Apareceu então uma jovem morena, vestida de vermelho, com grandes brincos. Os dois deuses, agachados no chão, observavam-na. Então Brahmā falou: “Mrtyu, Morte, venha cá. Deve rodar o mundo. Deve matar minhas criaturas, os sábios e os tolos. Deve obedecer apenas a uma regra: que não haja exceção”. A moça olhava o deus em silêncio, enquanto atormentava com os dedos uma guirlanda de lótus. Depois disse:” Pai, por que me escolheu para fazer aquilo que é contra todas as leis? E por que deverei fazer apenas isso? Eu queimarei sobre uma perene pira de lágrimas”. Brahmā disse:” Não tergiverser. Você é sem mácula e impecável é o seu corpo. Vá...”. Morte continuou silenciosa diante de Brahmā, enquanto suas costas lentamente se curvavam.


Morte era teimosa e não aceitou logo a ordem de Brahmā. Em Dhenuka, cercada por ascetas que já devia ter exterminado ficou sobre um só pé durante quinze milhões de anos. Ninguém lhe falava. Era uma das tantas que ali se retiravam. Mrtyu meditava, perplexa.

Brahmā convocou-a ao dever. Mas Morte apenas mudou o pé sobre o qual se apoiava — e assim continuou a meditar por mais vinte milhões de anos. Por alguns outros milhões de anos viveu depois com os animais selvagens, comeu apenas ar, mergulhou nas águas. Depois, sobre o monte Meru, jazeu longamente como um tronco. Passaram-se outros milhões de anos. Brahmā foi visitá-la: "Minha filha, o que acontece agora? Consumir poucos átimos ou alguns milhares de anos não muda nada. Um dia sempre acabaremos nos encontrando. E eu repetirei: ‘Faça o seu dever’ ". Como se não se tivessem passado aqueles milhões de anos e estivesse retomando o diálogo com o pai depois de uma pausa, Mrtyu disse: "Tenho medo de ir contra a lei". "Não tema", disse Brahmā, "nenhum juiz jamais conseguirá ser tão imparcial quanto você. E nem é o caso de você chorar tanto, como a vi chorando: suas lágrimas abrirão chagas nos corpos que deve exterminar. Melhor matar sem muita demora." Então Morte baixou o olhar e em silêncio percorreu o mundo. Tentava manter os cílios enxutos, como último sinal de benevolência com as criaturas que abatia.
(...)

Roberto Calasso, em 'KA'

Nenhum comentário:

Postar um comentário