20090301

Leitura de Domingo: O caminho da Serpente


'A coluna é representada na forma de uma árvore com sete rodas, os chacras* (sic). Cada roda se situa em pontos específicos da espinha dorsal que, em sua maioria, correspondem às principais glândulas endócrinas. O pri­meiro desses chacras - também chamados padmas ou lótus - localiza-se na base da coluna, sendo esse o ponto de partida onde está centralizado o poder da serpente.

Sentado, em postura ereta, meditando pensamentos que lhe foram ensinados, e pronunciando certas sílabas, o iogue deve respirar correta-mente, inspirando o ar por uma narina, contando o número de vezes que o faz, prendendo o ar e, então, expirando pela outra narina. Esse é um exer­cício extremamente desafiador, não só do ponto de vista físico mas também do espiritual. Deve-se despertar essa serpente enrolada em seu ponto de repouso na base da coluna, para que sua cabeça levante e a serpente possa subir o canal da espinha.

No século XIX, viveu na índia um sábio chamado Ramakrishna. Era profundo conhecedor da arte de ativar o poder da kundalini, e seus discípulos diziam: "Ó, mestre, o que se sente quando a kundalini percorre a coluna?"

"Bem", respondia ele, "às vezes é parecido com uma formiga subindo lentamente coluna acima, outras vezes é como um rato que sobe corren­do e, em outras, lembra um macaco pulando de um lótus para outro, em seu caminho para o alto".

Então, perguntaram ainda: "Ó, mestre, o que acontece nesse lótus, naquele e naquele outro?" Ele seguia comentando, subindo dos chacras inferiores, mas, quando atingia o nível da garganta, perdia os sentidos em estado de transe.

Esse não é um assunto abstrato, distante. Tenho-me interessado muito, ultimamente, por algumas pesquisas recentes relacionadas à esquizofre­nia e à psicose - quando as pessoas perdem contato com o mundo cons­ciente, com a consciência do ego que as mantêm no mundo consciente -e escorregam para o abismo da psique. Fascinava-me, há tempos, perce­ber quão próximas eram as experiências da Ioga daquelas descritas por Freud, Adler e Jung, em suas discussões a respeito das regiões mais profun­das da psique, nas quais as pessoas sucumbem. Há uma vasta literatura escrita por psiquiatras, em anos recentes, enfocando o tema, mas tais pro­fissionais, em sua maioria, nada sabem a respeito da Ioga. Ainda assim, os relatos de casos envolvendo o imagético das experiências de seus pacien­tes psicóticos, correspondem, ponto a ponto, às experiências da Ioga.

Certa vez, participei de um debate bem complexo com um importante psiquiatra, altamente conceituado, a respeito de assuntos como misticismo. Ioga e psicose e, no seu ponto de vista, se entendi corretamente, ele considerava as duas situações praticamente iguais. Ou seja: os iogues experienciam, de alguma maneira, uma ruptura psicótica, entretanto eles não se afogam nesse mar do subconsciente que traga o psicótico comum. O que estamos abordando ao descrever experiências de psicóticos e iogues é o mesmo mar, o mesmo oceano, a mesma crise. O psicótico afoga-se nes­sas águas, enquanto os iogues nadam nelas - e há uma diferença entre nadar e afogar-se.

Assim, o que vou descrever são essas águas - ou esse deserto, caso o leitor prefira essa imagem. Um dia, algum de seus amigos, ou você mes­mo, poderá vivenciar essa realidade por livre e espontânea vontade ou por circunstâncias psicológicas. Isso não é algo de interesse apenas exótico, remoto, mas um assunto que interessa muito de perto a todos nós, porque, segundo afirmou o psiquiatra britânico Laing em seu interessante livro, The Politics of Experience (A Política da Experiência), uma em cada dez pessoas nascidas em nossa era moderna irá sofrer algum tipo de colapso nervoso.1 De forma semelhante, Jung postula que, para cada lunático sob tratamento psiquiátrico, existem dez andando soltos por aí. Em vista disso, há uma grande chance de eu estar me dirigindo a pelo menos um leitor nessa condição.

Então, eis o mapa, digamos assim, ou a topografia da estrada que leva até o lado de lá e nos traz de volta.

Ao contrário de Ramakrishna, ainda não estive lá em cima, logo poderei falar das regiões superiores sem perder os sentidos. Sim, vou trabalhar com base em relatos, mas tentarei dar uma ideia de como é a jornada completa da kundalini.

O primeiro lótus chama-se muladhara, que significa "base-raiz". Nesse lótus, a serpente encontra-se enrolada e inerte em sua toca na base da espinha. Ela é como um dragão. Todos sabem como é o temperamento dos dragões - pelo menos, o dos dragões do Ocidente: vivem em cavernas, lá ocultam o ouro de seu tesouro e mantêm ainda uma bela jovem como refém. Não podem fazer absolutamente nada nem com o tesouro, nem com a jovem, mas querem simplesmente a posse. Dragões, assim como as pessoas que centram suas vidas em torno do primeiro chacra, vivem agar­radas ao poder, presas a uma vida que não é uma vida, pois nelas não há nenhuma animação, alegria ou vitalidade, mas tão-somente um viver som­brio e obstinado. A natureza da kundalini na muladhara é semelhante à do personagem Ebenezer Scrooge, antes de empreender a importante jornada de sua transformação interior, pelas mãos dos três fantasmas, na obra de Charles Dickens, A Christmas Carol (Conto de Natal). Espero que o leitor não conheça ninguém que viva em tal nível, mas eu conheço.

O objetivo do iogue é estimular a kundalini para que esta se levante da toca, na base da espinha, e se una ao senhor do mundo, que a espera no topo da cabeça, região do sétimo chacra, o sahasrara.

"Desperta, Mãe!", entoa essa devota canção bengali:
"Desperta, Mãe, Desperta!
Quanto tempo tens estado adormecida
No lótus do muladhara!
Realiza teu secreto ofício:
Ergue-te ao sahasrara,
Onde habita o poderoso Shiva!
Penetra ligeira os seis lótus,
O, tu, Essência da Consciência,
E cura minha dor!2


Nesse instante, a kundalini despertada projeta-se para o alto pelo canal da coluna, o susumna.

O segundo chacra acha-se ao nível da genitália e chama-se svadhishthana, que significa "seu refúgio predileto". Esse é o chacra que está totalmente centrado na experiência do prazer, ou kama. Quando a energia espiritual de alguém funciona nesse nível, sua psicologia é completamente freudiana. O sexo é sua única meta. O sexo é a grande frustração.

Seguindo sua trilha ascendente, a kundalini chega ao nível do umbi­go ou estômago. Esse chacra se chama manipura, que significa "a cidade da jóia brilhante". Nele, o interesse está em consumir tudo, controlar tudo, comer de tudo, transformar tudo em sua própria substância. Esse é, afinal de contas, o chacra do estômago. Quando a energia de alguém está nesse nível, sua psicologia é totalmente nietzschiana ou adleriana. São pessoas que querem consumir e obter poder para si sobre tudo o mais. São movidos pela vontade de potência (ou de poder). Esse é o nível em que se acha centrado o princípio artha, o impulso para o sucesso.

A maioria das pessoas vivência o segundo ou terceiro nível, os princí­pios do prazer ou do poder. Em geral, a psicologia freudiana baseia-se na ideia de que o impulso sexual é a necessidade primária vital. Já a linha adotada por Alfred Adler postula que a vontade de potência (ou de poder) é o impulso primário nu vida c todas as demais necessidades são sublimações ou inflexões deste. Os indianos também dizem isso; para eles, ambos os princípios — kama e artha — são impulsos básicos. São ambos inflexões daquela vontade dragônica ainda mais profunda, de simplesmente querer estar vivo. Entretanto, nesses dois níveis mais elevados, nos segundo e terceiro chacras, já há vitalidade, atividade, prazer e dor na vida. As pessoas desse nível são voltadas àquilo que está fora de si. Obtêm sua satisfacflo pessoal a partir do relacionamento com algo externo, um objeto exterior. No primeiro caso, no segundo chacra, a ênfase é erótica. No terceiro chacra, a ênfase está em conquistar e derrotar, quer na área militar, na financeira ou na erótica. Jung definiu essas pessoas como extrovertidas – voltadas para fora.

Já percorremos os chacras nos quais vivemos a maior parte de nos­sas vidas. Todavia, ainda temos quatro níveis para conhecer.

A seguir, chegamos ao quarto nível, de especial interesse, o nível do coração. Conhecemos a figura de Jesus, na Igreja Católica Romana, com Seu coração exposto, o Sagrado Coração. É nesse nível que alguém passa a se relacionar com os princípios mais elevados, com os poderes da arte e do espírito, que não são aqueles do meio empírico, exterior. Quando a kundalini atinge esse nível, como diz Wordsworth, o ser huma­no obtém:

Um senso sublime
De algo muito mais profundo que a fusão na essência,
Cuja morada é a luz de Sóis poentes,
O vasto oceano, o ar pleno de vida,
O céu azul e, no homem, a mente.3


O ser humano é levado a buscar aquilo que é. Diz-se que a divindade se encontra com o devoto no nível do coração. Isso significa dizer que a divindade desce até nosso plano, enquanto o devoto se eleva até ela. Essa ideia é traduzida pelo símbolo padrão, com dois triângulos equiláteros superpostos. No Oci­dente, é chamada de Estrela de Davi. Outra imagem encontrada frequente­mente na iconografia oriental é a das duas pegadas. São as pegadas da divin­dade. Talvez o leitor já tenha visto imagens das pegadas de Buda, apresen­tando o símbolo do dharmachacra, "a roda da lei", gravado no meio do pé.

Pode-se ir a Jerusalém e visitar o penhasco no qual Maomé deixou as impressões de seus pés, local de onde subiu aos céus. Nas proximidades, foi construída a grande mesquita Al-Aqsa. Na Índia, há até mesmo peque­nos vilarejos chamados de "as pegadas de Vishnu", por onde ele teria pas­sado e deixado suas pegadas. Portanto, a divindade vem até o nível do coração e aí grava suas pegadas. O devoto toca os pés com as mãos. Uma das saudações a um sábio ou monge na Índia consiste em tirar a poeira dos pés destes com a sua mão. A mão também aparece em muitos relicários primi­tivos. Em cavernas do período Paleolítico, voltando no passado até 30000 a.C., encontram-se gravadas na rocha as mãos de devotos que tocaram o reino da divindade.

O nome sânscrito para o chacra do coração é muito interessante: chama-se anahata, que significa "não tocado". Sua tradução mais comple­ta seria: o som que não é produzido pelo entrechoque de duas coisas. Tal­vez você já tenha ouvido falar do koan zen japonês: "Qual o som do aplauso feito com uma só mão?" Bem, é exatamente esse o som que não é produ­zido pelo entrechoque de duas coisas. Cada som que ouvimos é produzido dessa forma: por exemplo, o som da minha voz é produzido no momento em que o ar faz as cordas vocais vibrarem; o som do violino é obtido quando o arco roça suas cordas; o som de uma onda é causado pela água ao chocar-se de encontro à praia, e por aí afora. Qual seria o tipo de som que não é produzido assim? É o som de Brahman, a energia da qual o próprio mundo é uma precipitação. Conforme Einstein demonstrou, massa e energia são a mesma coisa. A massa é a projeção, por assim dizer, da energia no espaço ou, se preferir, a precipitação da energia em matéria. O som dessa energia, antes de se tornar massa, é o típico som não produzido da forma tradicional. Para ter uma ideia desse tipo de som, os indianos simplesmente tampam os ouvidos. Tente você mesmo e poderá ouvi-lo. Na verdade, sabemos ser esse som também produzido pelo entrechoque de duas coisas — ou seja, pelo fluxo do sangue através dos vasos capilares, em volta do tímpano —, mas se o leitor não soubesse disso, poderia até pensar ser esse o tipo de som a que nos referimos.

Esse som é o aum, ou om. O leitor, provavelmente, já deve ter ouvido falar desse mantra sagrado. É exatamente sua expressão vocal que produz o som que não é resultante do entrechoque de duas coisas. O som "o" em sânscrito é decomposto em dois sons: "a" e "u". Trata-se de um ditongo. Portanto, tem duas grafias: om ou aum, com o mesmo significado. Para se pronunciar o om ou aum, o som é produzido inicialmente a partir da parte de trás da boca, começando-se pelo "a"; em seguida, preenche-se a cavida­de bucal com o som do "u" e, então, fecha-se a boca para emitir o som do "m". Se for pronunciado corretamente — e isso não é algo fácil de fazer -, terá a impressão de que foram pronunciados todos os sons abertos que a boca humana pode produzir. Desse ponto de vista, as consoantes são apenas interrupções desses sons de vogais. Partindo-se desse princípio, todas as palavras e seus significados são simplesmente inflexões entrecortadas do aum, exatamente como todos os reflexos distorcidos do lago são apenas distorções fragmentadas da grande imagem cósmica.

Aum é deus. Aum é deus na forma de som. Normalmente pensamos o divino enquanto forma, como uma imagem que se pode visualizar. Mas, se um dia viermos a nos encontrar com Deus, este é o aspecto sonoro da forma que iremos encontrar. É o som de Deus, o som do Senhor do Mundo, de cujos pensamentos, de cujo Ser, de cuja essência em energia, este mun­do é a precipitação. Aum é o som dos sons, o Logos original, que encontra­mos no Evangelho, segundo João: "No princípio era o verbo... e o verbo era Deus."

Uma vez que aum é o Senhor do Mundo, tudo no mundo, sobre todos os aspectos, deve ser compreendido como estando, de alguma maneira, incluído nele. Para maior clareza, usemos uma linguagem alegórica. O "A", belo som aberto, é associado à consciência desperta, a maneira pela qual vivenciamos a realidade, quando despertos. Contudo, nesse estado, os objetos que vemos não são nós mesmos, vale dizer, pois o sujeito do conhecimento e o objeto do conhecimento são diferentes um do outro. Quando estamos acordados, prevalece a lógica aristotélica, a não é b, eu não sou aquilo que vejo. Ademais, os objetos vistos por mim são feitos de matéria bruta, a partir de substâncias densas. Não têm luz própria. Em vez disso, precisam receber iluminação de uma fonte externa.

O "U" é associado à consciência ao nível de sonho, algo bem diferen­te da esfera desperta. No sonho, somos o sujeito do conhecimento - vemos o sonho -, mas também somos seu objeto. É nossa substância que corporifica o sonho. Embora pareçam ser diferentes entre si, neste estágio, sujeito e objeto são a mesma coisa. Nesse nível, a lógica aristotélica não faz sentido. Além do mais, aqui os objetos têm uma natureza sutil e podem alterar sua forma rapidamente e sem nenhum esforço. Também possuem luminosida­de própria: não se precisa acender a luz para ver objetos em sonhos.

O "M" associa-se à ausência de sonhos em sono profundo. E a esfe­ra do mistério. A consciência está presente, em potencial, porque o indiví­duo adormecido está consciente, porém inconsciente. Sabemos - como o rei demonstrou ao brâmane, naquela história dos Upanishads - que, ao acordar alguém, há consciência apenas aguardando o momento de vir à tona novamente e isso se fará através de qualquer uma dessas zonas, so­nho ou vigília, mas, nesse estágio, acha-se coberta pela escuridão. Pois bem, consideremos essa consciência que se encontra inconsciente. Ela tem a consciência do nada, quer dizer, não é específica. Não se trata de cons­ciência em relação a qualquer objeto, quer seja do sonho ou da vigília.

Qual é a quarta sílaba no mantra trissílabo aum! É o silêncio que existe antes e depois de ser pronunciado. Essa é a totalidade da palavra e do mundo, então: temos o silêncio - ou seja, o não-ser - e o aum, que é o ser. Nenhum existe sem o outro. São mutuamente inter-relacionados. Por tudo isso, ao pensarmos nesta palavra, verificamos que contém, em si mes­ma, todos os mistérios do mundo.

Entretanto, quando se pronuncia aum, o som obtido é resultado do entrechoque de duas coisas e, portanto, não se trata do tipo de som produ­zido sem entrechoque. Ainda assim, mediante sua verbalização e repetição, pode-se direcionar a mente até o ponto em que se ouvirá esse tipo de som original, sem o entrechoque. Uma vez obtido isso, poderá ouvi-lo em todas as coisas. Escute os sons da cidade, o som da geladeira, escute quaisquer sons, sem personificá-los ou defini-los e ouvirá o aum. Feito isso, já que é o verdadeiro som do seu próprio coração, do seu próprio ser, ficará encanta­do. Será tranquilizado por ele e o escutará por toda parte. Assim sendo, não mais será preciso buscá-lo em qualquer lugar. O que se busca está aqui mesmo, para ser ouvido na essência de todas as coisas. A percepção dessa vibração ocorre ao nível do chacra do coração.

A percepção do som aum nos liberta do chamado dos impulsos infe­riores e nos eleva às alturas, ou seja, alcançamos o vazio. Nesse nível elevado, nossa natureza está acima de qualquer definição. E o último nível do Eu, o atman. É idêntico ao Brahman. Pode-se fazer referência ao Brahman-atman ou atman-Brahman. Os dois são um só.

Neste mundo da dualidade, o atman está destilado no interior da uni­dade conhecida como jiva, a alma individual em seu aspecto interno, en­quanto a face aparente do poder em cuja direção a alma busca a si mesma é representada pelo nosso velho amigo Brahman.

Desse ponto em diante, na viagem ascendente da kundalini, nosso fervor está em manter nossa consciência livre das interferências do mundo fenomenal e chegar a uma confrontação direta com esse som, e com a imagem que está em harmonia com ele. O quinto chacra, ao nível da larin­ge, chama-se visuddha, que significa "aquele que purga ou limpa". Nesse chacra, tenta-se eliminar a interposição do mundo, entre o Eu e o aum puro, ou entre o Eu e o ser divino de Deus. Esse é o chacra das disciplinas dos ascetas, dos monges. Aqueles que atingem esse nível focalizam sua energia no zelo religioso, direcionando aquele impulso que no terceiro chacra era central na busca do seu próprio interesse, vencendo as tendências de se voltar sempre ao exterior, introjetando-as e as concentrando em seu inte­rior. O visuddha corresponde exatamente ao nosso conceito de purgação; a passagem por esse chacra é similar àquela do Purgatório, em que o ser se purifica das limitações terrenas, para experienciar o supremo.

Isso nos aproxima do sexto chacra - ajna, "o terceiro olho". Esse é o olho da visão interior que percebe a suprema imagem do Senhor do Mundo, aquela forma humana do divino que transcende o que é humano. Aqui, o divino Ser torna-se manifesto, por assim dizer, em sua própria imagem. Nesse ponto jiva - a alma, a encarnação individual do Brahman, que retorna à sua fonte, e vai passando por sucessivas reencarnações - contempla o Senhor, Ishvara e esse nível é o que, na terminologia ocidental, chamamos de céu. A alma encontrou seu verdadeiro amor e, então, o impulso erótico do segundo chacra, entre as pernas, encontrou sua verdadeira meta no sexto chacra, entre os olhos.

Para o leitor atual do Ocidente, vai parecer um pouco desconcertante descobrir que, entre os dois caminhos, o do solitário iogue e o do assim chamado amante, resta muito pouco a escolher, uma vez que a forma apa­rente do mundo vira cinzas e é deixada para trás, de qualquer forma. Na verdade, o objetivo das duas logas é praticamente o mesmo. A única ques­tão pertinente aqui, do ponto de vista do Oriente clássico, é se aquilo que é conquistado, de uma forma ou de outra, é de fato aquele estado permanen­te de realização a partir do qual toda a temporalidade se desfaz, assim como as folhas e as pétalas caídas de um lótus.

Aqui, dentro deste corpo, estão o Ganges e o Jumna;
Aqui, Prayag e Benares;
Aqui, o Sol e a Lua.
Aqui, dentro deste corpo, estão todos os lugares sagrados:
Os tronos dos deuses e seus caminhos.
Jamais vi lugar algum de peregrinação,
Ou uma morada da bem-aventurança,
Que se compare ao meu corpo..5

Os dois nervos espinais, de ambos os lados do susumna, esquerdo e direito, são, respectivamente, os canais das energias feminina e masculina, que a respiração disciplinada dos iogues faz com se equiparem. Além disso, a kundalini, a força da serpente enrolada, é concebida como feminina. Na verdade, no âmbito do vasto e colorido domínio da iconografia e mitologia hindus, a energia em movimento (energia cinética) é concebida e represen­tada como sendo feminina e, por isso, a palavra shakti, que significa "ener­gia, poder, capacidade, força", também tem a conotação de deusa-consorte de um deus, a esposa, como consorte espiritual do macho, e do órgão femi­nino, a yoni, em relação ao linga. A kundalini no muladhara é a shakti do deus que habita o lótus, na coroa no alto da cabeça, com o qual ela deve se unir. Sua jornada coluna acima é, portanto, o voo de uma garota desper­ta, ardendo de desejo (kama) através de uma floresta cheia de perigos e armadilhas traiçoeiras, até extinguir-se na plena consumação e consumar-se na plena extinção: a busca de quem ama.

Comparativamente, o corpo da perfeição é andrógino - nem total­mente masculino, nem totalmente feminino, mas uma combinação de am­bos. Em certas obras de arte hindu é representado como Shiva Ardhanari. Shiva "a metade (ardha) mulher (nari)", que tem o lado esquerdo feminino e o direito masculino. O iogue deve perceber esse ideal em seu íntimo, por meio do despertar da força (shakti), de sua própria onisciên-cia, protegendo-a para que não se perca no emaranhado de armadilhas, guiando-a em sua viagem ascendente até a divindade no alto da cabeça, que sem ela certamente vai permanecer, digamos, um cadáver (shava), dissociado da energia vital. O princípio masculino é representado - talvez no modelo de vida típico indiano — como alguém que seja deixado em paz, alguém que gostaria de ficar sossegado em seu canto. A mulher, contudo, sussurra ao seu ouvido algo a respeito dos mundos que juntos poderiam criar, e o "cadáver" Shava torna-se Shiva, "o propício". Então, Shiva-Shakti é a imagem da perfeita consciência-em-ação do mundo vivo.

Contudo, há outra maneira mais óbvia e natural de obter a união Shiva-Shakti: por meio do ato sexual e, neste caso, não é necessário pensar na analogia entre deus e deusa, uma vez que o homem e a mulher em si mes­mos já viabilizam a imagem e a experiência. Na verdade, ao longo de todo o período de apogeu da arte e civilização indiana, essa modalidade de Ioga sexual, ou tântrica, foi defendida por muitos como sendo não apenas o ca­minho mais fácil e natural mas também o mais eficiente. Uma vez que fome e sexo, pelo que se alegava, eram os impulsos fundamentais em toda a natureza, a atitude de suprimi-los é antjnatural e, sua supressão continua­da levaria, tão-somente, a um estado mais mórbido que sublime. Não se deveriam impor esforços antinaturais para a percepção da verdade; muito pelo contrário, a trilha a ser seguida deveria ser aquela que a própria natu­reza já aponta. As forças naturais não deveriam ser aniquiladas mas fortalecidas, para que se tornem, em si mesmas, transmutadas a fim de produzirem a revelação da Outra Margem. 6

A masculinidade do lado direito do corpo é preponderante no homem; a feminilidade do esquerdo, na mulher: e o êxtase de sua união - mesmo no nível mais baixo dessa escala ampla e ascendente - é, por conseguinte, modo e sinal do "Grande Deleite"'(mahasukha), que é o êxtase e a nature­za do próprio Ser.

Os adeptos fanáticos dessa prática, os assim chamados Sahajayas, não veneram nenhum Deus ou deuses a não ser o homem que, pela força de seu amor, é divino. 7
Não obstante, nesse nível de ascensão da kundalini, a alma e seu amado, o Senhor, ainda são dois. São distintos entre si.

No sexto chacra, o relacionamento é tudo - o relacionamento do Eu com o Tu, da alma com o ser amado. Aqui, contemplamos a meta divina de toda a vida, porém é como se houvesse um muro de celofane entre a alma e o objeto, e o amor perfeito requer a inexistência de quaisquer muros.

A derradeira meta é transcender a dualidade - esse é o ponto funda­mental - e isso é obtido apenas ao nível da coroa da cabeça, o sétimo chacra, o sahasrara, ou o "lótus de mil pétalas". Quando a kundalini chega nesse pináculo, rompe-se a membrana divisória que existe entre a alma e o ser amado, e ambos desaparecem. Para haver um objeto, deve haver um sujeito do conhecimento e um relacionamento entre eles. Portan­to, após rompida a membrana, tanto a alma quanto Deus são extintos, fun­didos além da dualidade, além dos pares de opostos.

Nesse nível, encontra-se o que, em nossa linguagem, só podemos cha­mar de identidade. Mesmo assim, não se pode atribuir esse nome porque isso extrapola totalmente qualquer definição. É a respeito disso que desejo falar. A passagem através da linha de mistério, entre o sexto e o sétimo chacras, origina algo inimaginável, ou seja, toda a fenomenologia é trans­cendida bem como toda a subjetividade. Schopenhauer fala disso em O Mundo Como Vontade e Representação. Ele postula que "Se ao menos pudéssemos entender que fenómeno é esse no qual o um se torna muitos; como o nada se transforma em coisas".8 Ele chama esse paradoxo de "nó do mundo". Se pudéssemos entender isso, entenderíamos tudo; porém, isso é ininteligível.'


Joseph Campbell, Mitos de Luz: Metáforas Orientais do Eterno, pág. 51 a 61


Obs.:
Chacras=> transliteração 'comme il faut'=> cakras, que se pronuncia 'portuguesmente' chacras.



Tsk, depois eu volto para colocar as referências bibliográficas de Campbell.
;-)!

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